domingo, 1 de maio de 2016

O enterro de Rafinha

Fiquei surpreso ao saber o que aconteceu com Rafinha, a galinha que foi enterrada em Patos como gente. O enterro era simbólico, está certo, mas há pessoas que nem isso conseguem. Morrem e não têm quem as acompanhe na última viagem.  A galinha, pelo contrário, foi seguida por um imenso cortejo. Quem mais a pranteava eram as suas donas, que justificaram o préstito com o fato de Rafinha ter sido uma ave muito especial.
O enterro foi notícia em todo o Brasil e constitui mais um desses curiosos episódios que marcam a relação dos homens com os animais. Vez por outra vem à tona um caso interessante. Outro dia li sobre um cachorro que herdou a fortuna do dono, embora este tivesse mulher e filhos. Devem tê-lo aporrinhado muito em vida, para ele tomar uma decisão dessas. Gestos assim são diretamente proporcionais ao desencanto dos seus autores com os seres humanos. O desengano leva a que procurem nos bichos a humanidade que não encontram nas pessoas.
Isso não quer dizer que os animais por si não mereçam tais demonstrações de amor. Rafinha, por exemplo, era discreta e afetuosa. Não cocoricava alto, ou fora de hora, não tinha aqueles arroubos histéricos próprios da sua espécie nem sujava a cama onde dormia. Também apresentava umas esquisitices (como ser alérgica a frio e a muriçocas) que despertavam o desejo de protegê-la. 
O estranho não é as donas gostarem dela, mas tantas pessoas haverem comparecido ao enterro (que, ao que eu saiba, não foi programado em nenhuma rede social). Minha explicação para isso é que a sua morte representa um pequeno emblema do nosso tempo. Associam-se ao infortúnio de Rafinha alguns dos delitos que hoje mais infernizam nossas vidas.
Ela foi roubada do leito onde inocentemente dormia, e depois sequestrada. Em seguida, trocaram-na por duas pedras de crack. Vejam: só aí já se tem roubo, sequestro e tráfico de drogas -- males com que nos deparamos diariamente na mídia, mas nem sempre envolvendo uma pessoa (digo, uma galinha) só. Como se não bastasse, Rafinha morreu de melancolia, que hoje é considerada o “mal do século”.
Isso já seria suficiente para justificar a multidão que compareceu ao enterro, mas pode-se apontar outro importante motivo -- esse de natureza inconsciente: é o inconfesso remorso que sentimos diante das galinhas. Nos acostumamos e matá-las de forma cruel e a comê-las com frívola indiferença no almoço. 
Quem, tendo na boca uma coxinha macia, uma asa levemente fibrosa, um pescoço úmido do qual se desprende um sabor que estimula em torrentes nossas glândulas salivares -- quem, eu pergunto, se detém para pensar que essas partes deliciosas são de uma ave como Rafinha? Geralmente às alegrias humanas corresponde o sacrifício dos animais, que nutrem nossos encontros festivos com sua carne inocente. A morte da galinha foi uma oportunidade de purgar essa culpa.   
Culpa, sim, mais do que amor. Amor tinham as donas da galinha, que se recusavam a comê-la e faziam dela alimento não para o corpo, mas para o coração.

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