O
maior risco da interpretação é o intérprete ver no texto o que não existe. A
essa prática, dá-se o nome de superinterpretação. Superinterpretar é ir muito
além do que está dito. É propor intenções, sugestões, duplos sentidos, quando o
que se evidencia não passa muitas vezes de mediocridade. Isso pode ocorrer de
boa ou má-fé.
Um exemplo de má-fé está na correção
que certo professor fez ao texto de um estudante que “precisava passar”. O tema
da redação era “a amizade”, e o aluno se limitou a escrever: “Num tô afim de
falá disso agora, pô. Tô sem ninguém.”
O mestre lhe deu 8,0, que era nota a
necessária para a aprovação. Convocado à diretoria para se explicar, redigiu o
seguinte comentário:
“O
texto é sintético, ou seja, não revela o pecado da verborragia. A economia de
meios expressivos se constitui num importante fator de coerência, pois o
excesso de palavras não combinaria com a resolução do aluno em não escrever.
Essa atitude de recusa, em que se percebe um misto de tédio e rebeldia,
determina o minimalismo que orienta toda a redação.
“Vejamos algumas provas disso. O
advérbio ‘não’ é trocado por ‘num’, bem mais incisivo devido à ausência do
ditongo. Com um ‘não’ é possível negociar; com um ‘num’ -- abusado e
peremptório -- jamais. Merece também realce a troca de ‘estou’ por ‘tô’, em que
a supressão do fonema inicial (aférese) reforça a propensão ao tartamudo, ao
pontual, ao monossilábico, própria de quem não quer muita conversa.
“A
seguir vêm duas infrações à norma culta que, no entanto, se tornam funcionais
no contexto de rejeição instaurado desde as primeiras linhas. A troca de ‘a
fim’ por ‘afim’ (um erro de morfologia) justifica-se pela intenção de condensar
o sentido dos homônimos. É como se o valor de finalidade, contido na locução
adverbial, se enlaçasse à ideia de afinidade presente no adjetivo, numa espécie
de fusão fonossemântica que procura destacar a indisposição afetiva.
“Essa indisposição também explica a
forma verbal “falá”, pois a presença do ‘r’ sugeriria uma vibração em nada
condizente com o ânimo do autor (de uma exasperada contundência). Tal ânimo
também se confirma no uso do monossílabo de teor exclamativo que aparece no fim
do período: ‘pô’. Esse ‘pô’ enfático, misto de interjeição e vocativo, acentua
a dramaticidade da negativa.
“No segundo período repete-se a
aférese (Tô), mas agora seguida por uma expressão em português correto (“sem
ninguém”). Nessa parte do texto, de um confessionalismo despojado, o aluno
explica suas razões. Percebemos que sua recusa, e consequentemente seus
deslizes, se deve a ele estar sozinho e por isso não ver sentido em escrever
sobre a amizade. Compreendemos então que a rebeldia que perpassa o texto foi
determinada por razões existenciais, as quais encontraram um correlato perfeito
nas escolhas linguísticas. Essa é a explicação para a nota que lhe dei.”
O aluno acabou passando. O professor,
claro, perdeu o emprego. Algum tempo depois, foi contratado pelo jornal da
situação. Dizem que sua principal função no órgão é fazer a crítica dos poemas
do governador.
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