Hoje
ela mais escuta do que fala. É o contrário do que
costumava acontecer, já que ela sempre falou muito. E
os filhos precisavam de
suas palavras. Eram o resultado de seus conselhos, advertências,
ralhações. Frutos não apenas biológicos, mas também espirituais. Nem
tudo era acatado ou compreendido. Precisou de tempo para que entendessem a intenção, o sentido, o valor do
que ela dizia.
Hoje
o seu mutismo, ou quase isso, é uma espécie de prêmio. Ela já disse tudo o que
tinha a dizer e pode se dar ao luxo de silenciar. Ou falar o que quer, no contexto em que quer, numa espécie de automatismo que no fundo
é uma prova de liberdade. Liberta de dizer o que deve, pois isso fazia parte da sua missão, ela
reconquistou o direito ao murmúrio e ao devaneio.
Sua
fala é um tecido esgarçado de lembranças, anseios imprecisos, temores que o
tempo ainda não desfez. A voz emerge lenta, aos
poucos, como se sobreviesse de um tumulto interior. Às vezes estanca, suspende-se no ar. Isso nos
leva a querer completar o
sentido, que não é necessariamente o que ela pretendia -- mas pouco importa: o
elo falso encadeia novas associações, que geram outros sentidos.
Todos
válidos, pois hoje o seu espírito recusa
a exclusão. Assim é que uma recordação do dia anterior se
confunde com uma lembrança muito antiga. Um muro em frente a onde ela mora
torna-se a parede da casa onde viveu na infância. Um amigo da família se
superpõe à imagem de um parente que já morreu. Com isso, ela resgata o tempo e os mortos. Cria uma
eternidade em que também se inclui.
Passa
a maior parte do tempo vendo televisão, ou sentada junto à mesa. Depois de
tantos anos, ganhou o direito de apenas observar o movimento da casa -- ela que
fazia tudo, decidia tudo. Ninguém já lhe pergunta o que deve ser feito, mas
sabe que ela é a origem do caminho que cada um trilhou. Seu atual sossego tem
muito do dever cumprido. Se pudesse, faria mais. Talvez não voltasse à máquina
de costura, que abandonou há tempos, mas ainda estaria indo a bancos, feiras,
supermercados, e talvez riscando a planta de uma nova casa (chegou a construir
três).
O curioso é que mesmo lacônica, por
vezes silenciosa, ela é o centro da casa. Um centro do qual se irradia uma
sensação de conforto e paz. Quando recebe filhos, netos, bisnetos, genros ou
noras, os olhos são a melhor expressão da sua alegria, que desabrocha num
sorriso largo. Ela em verdade não precisa desses momentos para sorrir; fez do
humor o doce invólucro da sua sensibilidade. Ri do que vê, do que ouve, até do
que diz, com uma candura e um despojamento de quem tem a alma cheia de graça.
Essa
disposição tranquiliza os que a cercam. Torna-a imune às contrariedades da vida
e alimenta a convicção de que ainda vão tê-la por muitos anos. Se ela hoje
influi pouco nas coisas práticas, não deixa de ter um importante papel
emocional: continuar vivendo. Permanecer entre os que a amam até que se
habituem à dor de um dia perdê-la. Como sempre foi generosa, não há dúvida de
que fará isso de boa vontade. Com a largueza do seu coração de mãe.
Nenhum comentário:
Postar um comentário