terça-feira, 3 de maio de 2016

Crise

Um dia Clodomiro chamou Heloísa e, sem mais nem menos, disparou:
-- Precisamos nos separar. Do contrário, o pessoal vai acabar nos censurando. 
-- O quê?! 
-- Somos casados há mais de 20 anos! Isso não existe mais.
A mulher não conseguia entender:
-- Mas está tudo bem entre nós... Não temos nenhum problema sério. 
-- Isso é o que você pensa. Esse tipo de raciocínio é fruto de acomodação. Nós nos acomodamos um ao outro e não percebemos.
-- Você se cansou de mim?
-- Claro que não, mas esse é o problema. A gente devia, depois de tantos anos, pensar em partir para outra. Persistimos numa relação que estagnou. Quem hoje poderia nos tomar como modelo? Somos um mau exemplo.
-- Puxa, não pensei que você sentisse essas coisas a respeito de nós -- suspirou Heloísa, baixando os olhos. 
-- Não sinto, já disse. Mas sabe por que não sinto? Porque a rotina da vida doméstica anestesiou meus sentimentos. Compreendi isso assistindo ontem à entrevista de uma terapeuta de casais. Nosso casamento perdeu o romantismo. Há quanto tempo não lhe dou uma flor?
-- Mas eu não preciso de romantismo a esta altura da vida! E você sabe que tenho alergia a flores. Na única vez em que me deu uma rosa, terminei arrancando as pétalas com os espirros.
-- Sei, sei. Mas isso não invalida o que estou dizendo. Usei a flor como símbolo. Para mostrar que estamos mesmo em crise.
-- Em crise?
-- Sim. Em crise... por ausência de crise. Precisamos ter a coragem de admitir isso e agir como pessoas modernas. Proponho que façamos uma viagem, mas não juntos. Cada qual vai sozinho. É hora de dar um tempo.
Heloísa percebeu que não adiantava discutir. Clodomiro se sentia defasado, tinha desenvolvido um complexo por não se comportar como os outros. A viagem poderia ajudá-lo a tirar essa ideia da cabeça. Assim mesmo ficou triste; afinal iam bem, há meses não discutiam nem brigavam. O marido falou que esse longo armistício era um sintoma da acomodação. Lembrou-lhe a letra de Dolores Duran: “...e já não temos nem vontade de brigar.”
Ficaram uns dois dias tratando dos preparativos, até que no terceiro Heloísa chamou Clodomiro e lhe disse:
-- Não entendo bem essa coisa de internet, por isso não estou conseguindo comprar a passagem. Você pode me ajudar?
-- Claro, mas só se você me der uma mãozinha com a mala. Não sei bem que roupas levar. Sempre tive dificuldade de escolher o que combina, e não quero fazer feio no lugar aonde vou.
-- E para onde você vai? 
-- Para Camboriú.
A mulher riu:
-- Engraçado... Eu também reservei vaga numa pousada de lá
-- “Paraíso das Águas”? 
-- Essa mesmo! Será que lá ainda tem aquelas estátuas de anões na beira da piscina?
-- Você se segurou na cabeça de um deles para não cair... – completou risonho, como se falasse para si mesmo. Depois de um breve silêncio, propôs:
-- Se vamos para o mesmo lugar, podíamos viajar juntos. Mas só viajar! Lembre-se de que estamos em crise.
       E foi assim, meio fingindo o contrário, que partiram para a segunda lua de mel.

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