Numa passagem de
“Dom Casmurro”, Bentinho passeia com o agregado José Dias numa das ruas
centrais do Rio. Vão conversando amenidades (José Dias disparando seus
superlativos) quando uma mulher tropeça a poucos metros deles. Com a queda, ela
deixa ver parte da liga que lhe aperta uma das meias.
Para Bentinho, seminarista sem vocação,
o efeito é arrebatador. Os dois continuam a conversa, mas o rapaz não consegue
tirar a cena da cabeça. Sua perturbação não diminui quando ele chega ao
seminário, pois, como escreve Machado, “as batinas tinham ar de saias”. Ou
seja, a indumentária dos padres evocava o tombo da mulher e a exposição do
artefato erótico.
“Uma liga!” -- se espantará o leitor de
hoje. É certo que não se usam mais ligas, nem meias, nem aqueles vestidões
compridos que pareciam embalsamar o corpo feminino. Naquele tempo a roupa quase
não mostrava nada, e justamente por isso o pequeno elástico que fazia a meia
aderir à coxa era um poderoso estopim erótico. Era uma pista, um indício que
acendia a imaginação e com ela o desejo (o erotismo não está no que se
explicita, mas no que se entremostra).
Lembrei-me dessa passagem a propósito
da estudante de São Bernardo do Campo que foi vaiada, e quase linchada, por
haver ido à faculdade seminua. A televisão mostrou e repetiu a cena: a moça
acuada numa sala, chorando, e do lado de fora uma multidão uivando como uma
horda de lobos morais. Se pudessem a estraçalhavam ali, em nome dos bons
costumes. Quando ela saiu, sob escolta, teve que ouvir gritos de p... até
deixar o estabelecimento.
Muito se discutiu o comportamento da
turba, que parecia tomada por uma ira santa. Uns o consideraram impróprio numa
época de costumes arejados. Não se justificava tanto puritanismo em pleno
século 21, quando a mulher quebrou tabus a ponto de usar biquíni e fio dental.
Mais do que zelo pelos bons costumes, haveria nas vaias intolerância e
preconceito.
A reação não parecia coisa de
civilizados, concordo, mas é preciso reconhecer que a moça apelou. Foi para a
faculdade com um microvestido vermelho que lhe deixava as pernas de fora e era
um chamariz para os olhares masculinos. Quem vai às aulas daquele jeito quer
mesmo estudar? Ou quer chamar a atenção para si com a mira em outros
propósitos? O exibicionismo do corpo não se harmoniza com a concentração e o
recato exigidos numa sala de aula.
Se faltou à turba moderação, faltou à
garota senso. O despropósito com que se vestiu mostra que ela não tinha noção
de onde estava. Ou, se tinha, ignorou a praxe e acabou atentando contra o
decoro. As vaias agressivas seriam uma forma de revidar o acinte.
Vai
longe o tempo em que a visão de uma liga era capaz de tirar o sono de um
adolescente. A liga se foi, e com ela o pudor, que tornava o corpo feminino um
mistério. Ninguém precisa fantasiar o que se escancara nas ruas, nos bares, nas
praias, e torna banal a nudez. Certos limites, contudo, devem ser preservados.
Se à mulher não é mais proibido se desnudar, que pelo menos ela se dispa em
locais convenientes.
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