domingo, 1 de maio de 2016

O sono do justo

        O pastor decidiu ir embora. A ideia lhe ocorreu quando um dia, olhando o rebanho, deu-se conta de que havia ali muitas ovelhas negras. Não conseguia controlar o alastramento desses bichos de pelagem escura, que baliam diferente e comprometiam a homogeneidade do grupo. Queria que fossem numa direção, mas eles iam em outra. E na debandada levavam consigo um monte de carneiros, seduzidos pela possibilidade de trilhar outros caminhos.
           “Caminhos que levavam a quê!?” -- perguntava-se, com desalento. Só há um único e verdadeiro caminho. Poderia aumentar a cerca, reforçar a porteira, tanger os rebeldes para dentro do redil -- mas estava cansado. O cajado pesava-lhe com a idade. Tinha medo de tropeçar e cair.
Se o problema fosse apenas os desertores, ainda ia. O diabo (nossa! não quis dizer esse nome!), o terrível eram os bodes que perseguiam os cabritinhos tenros. Na ausência das cabras, eles aplacavam seus instintos com esses pequenos animais. Não ignorava que isso sempre existira no grupo, mas não na dimensão com que havia agora.
Os cabritos viviam assustados, não conseguiam dormir nem comer direito. E o sofrimento deles não passava despercebido aos pastores de outros rebanhos, que o criticavam por não conseguir conter a sanha dos hircinos. Se não tomasse uma providência, onde tudo isso ia parar?
Iria embora, mesmo que o julgassem mal. Sabia que ninguém perdoa os desistentes, mas ele se perdoava, e isso era o bastante. Tinha a convicção de que seu gesto representava um sacrifício em favor do rebanho. Se havia alguém a quem devia considerações, era a Pedro, o contratante que o tinha colocado ali. Pedro fora o primeiro condutor de ovelhas e estabelecera regras para os que o sucedessem. Uma delas era perseverar na missão, jamais abandonar aqueles a quem serviam de guias.
Mas será que Pedro o poderia julgar? Ele era de fato um homem reto, exemplo de pai de família, mas certa vez cometeu um deslize imperdoável. Seu patrão havia sido preso injustamente e invocara o testemunho do empregado para mostrar que não tinha cometido crime. Receoso de também ir para a prisão, Pedro negou que o conhecesse. E não fez isso apenas uma vez! Todos reprovaram esse gesto de covardia, pois conheciam bem o acusado. Era um homem bom e honesto. Um homem de tal grandeza, que acabou perdoando quem disse não o conhecer. Não apenas o perdoou como também, para mostrar que não cultivava ressentimentos, chamou-o para cuidar das suas ovelhas. O patrão de Pedro não era mesmo deste mundo.
          Pensar em tudo isso reforçou-lhe a decisão. Não era melhor nem pior do que ninguém. Tinha todo o direito de deixar a outro a condução do rebanho.  Como não faltava quem quisesse ocupar o seu posto, acharia fácil um substituto. E não se furtaria a lhe dar orientações; estava cansado, não morto. Mas só falaria depois... Por enquanto, desejava ficar só. Se fosse um religioso, procuraria algum claustro onde pudesse meditar. Como era um simples pastor, um homem rude do campo, queria apenas um chão onde pudesse arriar o cajado e dormir.

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